Chega de viver de saco cheio!

1 de fevereiro de 2023

Estamos no início do século XX e a guerra é iminente. Após o recrutamento, os soldados eram colocados em filas e recebiam sacos para colocar as suas coisas. E a marcha começa.

Ao longo do caminho, alguns soldados encontram uma série de coisas que podem ser úteis, como cipós, pedras, gravetos, etc. Após horas de caminhada, percebe-se que os soldados que estavam com o saco cheio de coisas carregavam um peso maior que os demais e, com isso, precisavam de mais esforço para concluir o trajeto.

À noite, esvaziava-se o saco, que também era usado para dormir. E, no outro dia, tudo começava novamente e o saco cada vez mais cheio.

A nossa vida também é assim. Temos uma necessidade enorme de comprar e manter coisas que na verdade apenas criam pesos desnecessários para a nossa vida. E é sobre isso que vamos tratar nessa provocação filosófica.

 

As coisas não nos pertencem

No Fédon de Platão, o autor apresenta que o ser humano foi concebido na dualidade da alma e do corpo, sendo a alma imortal e conectada ao divino, e o corpo a prisão da alma, mortal e cujas demandas levam à infelicidade e vícios. O processo de liberdade, portanto, advém da capacidade de não atender alguns apelos do corpo.

O filósofo grego Epicteto (55-135), pertencente à escola estóica, bebeu da fonte de Platão para dividir a realidade entre o que é “sobre nós” e o “não sobre nós”. O que nos pertence é a nossa capacidade de julgamento, porém o nosso foco costuma estar no que não nos pertence, que – dentre outras coisas – o autor elenca os nossos cargos, a opinião dos outros e as posses.

Sobre as coisas que não nos pertencem, destaca-se ainda que não as podemos controlar e tem por característica a instabilidade e mudança. Desse modo, ocupar-se dessas coisas traz sofrimento e infelicidade.

Opção pelo desapego

Explica o filósofo Antonio Carlos de Oliveira Rodrigues, no livro Filosofia do desapego: a Áskesis de desapropriação epictetiana à luz da Kátharsis do Fédon de Platão, que se “tudo está sujeito à mudança, daí decorre o procedimento catártico na forma de uma ética de desprendimento, cujo papel principal é o de imunização contra o sofrimento e a inquietação provenientes da identificação do homem com o que é fraco, instável e impeditivo”. (RODRIGUES, 2017. Pág. 68).

O desapego torna-se uma necessidade para alcançarmos a liberdade e atingirmos a felicidade. No sentido epictetiano, devemos separar o que não está em nosso campo de decisão e ação, e darmos o correto peso para as circunstâncias, objetos, opiniões, posses, etc. Isso implica também uma revisão do nosso modelo mental, em que temos a necessidade de manter uma imagem que seja agradável aos outros.

“As pessoas não gostam de mim, mas da imagem que tem de mim. Daí passo a vida inteira me esforçando para manter uma imagem. Na hora da dor, estaremos sozinhos.” Pe. Leo, SCJ

Na perspectiva cristã – também vivida pelo próprio Cristo – para sermos felizes, devemos estar preparados para perder tudo o que temos e não são nossos (no sentido epictetiano) como a beleza e a saúde do corpo, o nosso cargo e honras, os nossos familiares e amigos, etc.

 

Três tipos de apego

Ao longo do curso de filosofia, tive a oportunidade de participar de algumas palestras com o fundador da comunidade Bethânia, padre Leo, scj. Em uma dessas, ele refletia sobre o viés mercadológico que nos oferece uma outra perspectiva com promessas de felicidade, que no fim do dia são atalhos para a infelicidade. São elas:

  1. Preciso ter
    A ideia de que só vou ser feliz quando eu tiver alguma coisa. Desse modo, mantenho uma enorme “lista de desejos” e fico aflito para comprar o máximo que conseguir. Reflito sobre esse tema, a partir da filosofia de Arthur Schopenhauer no texto O insaciável desejo de saciar-se, que recomendo a leitura.
  2. Preciso manter
    Quando tenho, preciso manter. E para isso, as preocupações com o medo da insegurança – o que tenho pode ser roubado, riscado, perder o seu valor. As coisas acabam por ter mais valor do que a própria liberdade.
  3. Preciso evitar o que eu não quero ter
    Outra característica é o medo. Sabemos que a violência é um tema que historicamente nos chama a atenção e existe uma exposição midiática nisso. São diversos os programas de fim de tarde (e agora até no início das manhãs) que querem nos impor o medo da insegurança. Além disso, também nos impõem a passar a vida com medo de uma doença, do desemprego, da saudade, de perdermos nossas posses, dentre outros. Porém, reitero que para sermos felizes, devemos estar preparados para perder tudo o que temos e não são nossos.

 

Simples no papel

Apesar de parecer simples no papel, sabemos que no dia a dia a coisa não é bem assim. Exige de nós esforço e disciplina. O que está por trás é o apego. Porém, amar é diferente de se apegar e, no sentido epctetiano, não devemos nos apegar nem ao aplauso e nem à crítica, muito menos às coisas.

Talvez tirar um pouco de coisas do nosso saco de soldado tornarão o nosso trajeto mais leve.

Referências

RODRIGUES, ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA. Filosofia do desapego: a Áskesis de desapropriação epictetiana à luz da Kátharsis do Fédon de Platão. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017.

📷 Fishing For Frogs (1882) | William Bouguereau (French, 1825-1905)| Imagem reprodução