Por que a música nos traz liberdade?

5 de junho de 2022

Seja qual for a atividade que estamos fazendo, é praticamente impossível não acompanhar uma música ou marcando o ritmo nos pés ou batucando na mesa. Gostando ou não, a música nos toca de alguma forma. Se for o nosso estilo favorito então, é comum uma respiração mais longa, um sorriso no rosto, uma expressão como quem concorda com o que está sentindo, uma dança ou mesmo tocar guitarra ou bateria no ar.

Sim, a música parece nos transformar. E dificilmente alguém fica indiferente a ela. Afinal, por que a música nos contagia e traz uma sensação de liberdade?

Entendendo a nossa essência

Antes de adentrarmos na música, é importante entendermos ainda que superficialmente do que se compõe o ser humano. Há diversas teorias, mas na perspectiva da antropologia filosófica, podemos afirmar que o ser humano possui três categorias principais: o Nous, que é a categoria espiritual, que é a capacidade humana de abertura ao divino, ao transcendente; a Psykhé, que é a nossa psique, ou seja, a nossa mente; e a Soma, que é o nosso corpo.

Sim, estou falando grego, mas creio que nesse contexto a compreensão fica simples. Acrescento apenas mais dois conceitos importantes para o nosso texto que são ontos, que é objeto da ontologia, que investiga o ser das coisas, ou seja, a sua natureza mais fundamental; e ente, que é a existência do ser. Ficou confuso?

Uma brincadeira comum entre filósofos é dizer que o ontos é o ser e o ente é o ser sendo, por exemplo, existe a natureza do ser humano (ontos) e também existe eu, Leonardo, que represento essa natureza na prática (ente). Uma outra brincadeira é chamar o ser humano de “noeticopsicosomático”, ou seja, um ser que tem espírito, alma e corpo. Enfim, brincadeiras à parte, espero que esteja claro o suficiente para darmos o próximo passo. Caso contrário, deixe o seu comentário que faremos o nosso melhor para ajudar você a entender.

Somos prisioneiros de nós mesmos

Na história da filosofia, esses conceitos antropológicos citados acima foram explorados das mais variadas formas. Não vou me alongar aqui, mas algumas correntes diziam que o ser humano era corpo e alma como um ser único, outros diziam que corpo e alma são elementos separados, isso sem contar as teorias sobre os tipos de alma e depois os debates religiosos.

A discussão é longa, mas um aspecto que é mais consensual é que o ser humano é prisioneiro dele mesmo. Novamente, na história da filosofia diversos autores disseram isso de forma diferente, mas como o nosso foco aqui é a música, citarei um em específico, Arthur Schopenhauer.

A vontade e o sofrimento

Para quem conhece um pouco de Schopenhauer, fica difícil imaginar um filósofo tão pessimista curtindo a sua vitrola, cantarolando e batucando. Porém, trago aqui algumas referências de leitura que me tiraram essa primeira impressão e, há quase 20 anos, me mostraram a outra face desse pensador. Porém, prepare-se para um pouco de tensão no caminho.

Em linhas gerais, o pensamento de Schopenhauer nos conta que é a partir do corpo (soma) que experimentamos do bem ou do mal, do prazer e da dor como uma busca de vida. Para ele, o corpo é o que nos torna parte do mundo, mas também é por onde recebemos e percebemos a ação do mundo. Ele vai chamar essa ação do mundo no ser humano de “vontade”.

A vontade está em tudo e ativa sempre, desde as forças da natureza, até as plantas, os animais e os seres humanos. A mente cansa, a vontade nunca. Por isso, a vontade torna-se insaciável e fonte de sofrimento, como um martelo que não para nunca e supera as nossas forças, mas ainda que fracos, por mais que busquemos satisfazê-la, essa satisfação será temporária.

Sim, eu avisei que seria tenso.

Sendo a vida uma necessidade e dor, a medida em que esta é satisfeita, cai-se no tédio, no vazio. Então percebemos na vida uma oscilação entre dor e tédio. É como se estivéssemos o tempo todo condenados à dor e a felicidade não passa de ilusão.

Um exemplo prático. Você deseja um smartphone novo. Isso não sai da sua cabeça até que você compra. Fica feliz, mas logo em seguida, se percebe desejando outra coisa. E isso num ciclo interminável. Eu trato sobre esse assunto no texto O insaciável desejo de saciar-se, que recomendo a leitura.

O lado bom disso tudo é que não estamos sozinhos… Schopenhauer diz que esse fenômeno acontece com indivíduos, mas também com povos inteiros, haja vista que independente de período histórico ou região geográfica, a insatisfação gerou diversas guerras.

A contemplação artística

Mas nem tudo é trágico para Schopenhauer e, há sim a possibilidade de uma libertação, ou superação, da vontade a partir da contemplação artística. Desta forma, é através da arte, que o homem eleva a mente à contemplação da verdade, porém sem influência da vontade.

Lembra do ontos? Pois é, Schopenhauer dizia que a arte faz o ser humano elevar-se ao seu ontológico (razão de ser), que está acima das vontades. Segundo ele, a contemplação artística:

Nos livra o espírito da opressão da vontade, nos desvia a atenção de tudo que a solicita, e as coisas nos aparecem desligadas de todos os prestígios da esperança, de todo o interesse próprio, como objetos de contemplação desinteressada, e não de cobiça; é então que esse repouso, procurado baldadamente nos apresenta e nos dá o sentimento da paz em toda a sua plenitude.(SCHOPENHAUER, 1960. p. 107)

Assim, a contemplação estética conduz o homem a uma complexa e infinita satisfação total dos seus mais profundos desejos. A satisfação total dos desejos, por sua vez, só é alcançada pela estética, observando novamente a categoria do “puro olho do mundo”. O homem busca no mais alto grau de sua interioridade a satisfação e libertação da alma, traduzindo na emancipação do ser.

A música fala ao nosso ser

Tratando-se da música, Schopenhauer a vê como a principal expressão artística. Ela é uma linguagem universal, comum a todos, e de modo tão claro e distinto, que todos podem entender com tamanha clareza a ponto de sentir como o autor, está além da própria intuição.

Para ele, a música “não exprime uma alegria especial ou definida, certas tristezas, certa dor, certo medo, certo transporte, certo prazer, certa serenidade de espírito, mas a própria alegria, a tristeza, a dor, o medo, os transportes, o prazer, a serenidade de espírito; exprime-lhes a essência abstrata e a geral, fora de qualquer motivo ou circunstância. E, todavia, nesta quinta essência abstrata, sabemos compreendê-la perfeitamente”. (SCHOPENHAUER,1960. p. 114).

Sendo assim, a música vai direto à essência, fala da coisa em si, por isso ela está tão cheia de emoções e faz com que o ser humano, na dimensão de sua profundidade ontológica, sinta e se revele para si mesmo e para os outros.

 

A música nos traz liberdade

Em resumo, podemos dizer que até para o mais pessimista dos filósofos, sendo que o filósofo já costuma ser um pouco pessimista, a música traz a verdadeira inspiração, abre a nossa mente, nos permite imaginar e toca o fundo do nosso ser.

Por isso a dificuldade de ficarmos indiferentes à ela. E também por isso, quando tocamos a nossa música favorita, parece que nada mais importa: a idade, o cargo que ocupamos, a empresa que trabalhamos ou mesmo o ambiente que estamos. A nossa vontade é de deixar fluir em nosso corpo, em nossa alma e em nosso espírito.

Espero que você tenha gostado dessa viagem e, sobretudo, que a sua leitura tenha sido acompanhada de uma boa música. Aliás, que tal deixar nos comentários a sua música, banda ou estilo musical favorito?

Referências

ABBAGNANO, N. História da Filosofia. Tradução: Armando da Silva Carvalho. Lisboa: Editorial Presença, 1970. v. 9.

REALLE, G.; ANTISERI, D..História da Filosofia: do romantismo até nossos dias. 6 ed. São Paulo: Paulus, 2003. vol. 3

SCHOPENHAUER, A. Dores do Mundo. Tradução: José Souza de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Brasil Editora, 1960.

SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação. Tradução: M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

SCHOPENHAUER, A. Da Morte. Metafísica do Amor. Do Sofrimento do Mundo. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.

📷 The Concert (1623) | Gerard van Honthorst (Dutch, 1592 – 1656)