Um pouco de perplexidade faz bem

5 de outubro de 2020

Um dos mitos mais interessantes muito utilizado pelo filósofo e escritor Albert Camus é o Mito de Sísifo, o qual afirma que, “os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. Eles pensaram com alguma razão que não há punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”. (CAMUS, Albert. O absurdo e o suicídio. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo).

Longe de aprofundar a filosofia de Camus, que parte de entendermos o absurdo dentro de uma perspectiva existencialista, o mito de Sísifo convida-nos a pensarmos na necessidade da perplexidade para o cotidiano de nossas vidas. No entanto, o que é perplexidade? Segundo os principais dicionários da língua portuguesa (Aurélio, Houaiss, etc.) se resume na capacidade de ficar espantado, admirado, chocado diante dos fenômenos que se apresentam para nós. Para o filósofo Khalil Gibran, a perplexidade é o início do conhecimento. É a partir da capacidade de ficarmos “assombrados” que surge a reflexão, a crítica e as crises existenciais eminentes ao homem e a sociedade.

Ao relacionarmos o conceito de perplexidade com o mito de Sísifo, somos convidados a refletir sobre as coisas que acompanham nossa vida e necessitam deixar-nos espantados. Todos os dias, cada um de nós tem uma pedra para rolar até o cume de uma montanha. Essa pedra representa nosso trabalho, nossa rotina, nossas ações, nossas relações que, em determinado momento e, nas palavras do próprio Camus, “vemos o rosto crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de um ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé que a retém, a tensão dos braços, a segurança totalmente humana de duas mãos cheias de terra”. Impregnados pela rotina, fundimo-nos a ela, correndo o sério risco de cairmos no modo automático de nossas ações fazendo da repetição um fardo, um peso que “nos tira de nós mesmos” e leva-nos à sensação de “vazio existencial”. Em outras palavras: quando não damos significado, não pensamos sobre o sentido que nossas pedras têm em nossa vida corremos o risco de cairmos no mito de Sísifo, e então, a vida se torna um fardo, um castigo para nós, nos jogando no automatismo e na infelicidade.

Diante da rotina, devemos deixar de vivê-la para ter uma vida diferente? Devemos deixar o trabalho porque esse tornou-se um fardo e todos os dias repetições? Devemos deixar as pessoas com quem nos relacionamos todos os dias?

Sabemos que a rotina e a repetição não são coisas ruins. A rotina é importante para a organização da maior parte as dimensões de nossa existência e ela faz parte, desde o início até o fim, de nossa existência. Ter rotina dá-nos a sensação de segurança e tranquilidade em nossas ações. No entanto, o que o mito de Sísifo vem nos ensinar é que, cada vez que a “pedra rola”, a percepção da realidade e os sentimentos são diferentes e o papel da perplexidade é de fazer com que experimentemos as sensações e a criatividade que enchem a nossa vida de sentido e são irrepetíveis na nossa existência.

Mas, como entender o papel da perplexidade no cotidiano da vida?

Aristóteles, grande filósofo grego, ao refletir sobre essa temática, coloca a filosofia como um grande instrumento de superação do automatismo e niilismo. O filósofo estagirita diz que a filosofia nasce da admiração e do espanto. Em grego ele chama o espanto de to thaumázein. É por meio dele que reconhecemos a nossa própria ignorância e desenvolvemos a capacidade de ver a rotina e a vida com novos olhos.

O espanto se traduz na capacidade admirativa, de ver de perto e de ver com novos olhos realizando a singularidade da alma humana, mesmo que de forma rotineira e, aparentemente, repetitiva.

Por fim, no ano de 2020, a perplexidade atingiu a sociedade global de maneira eminente. O atual contexto em que vivemos nos deu-nos uma “sacudida”, tirou-nos da rotina e levou-nos a uma série de reflexões. Somos obrigados a repensar a vida, os valores, a sociedade e as relações humanas. A pedra de Sísifo continua rolando, mas aquele que a empurra todos os dias está diferente. Sair do “automático” nos traz insegurança, medo e crise mas, também, dá-nos a possibilidade de nos redescobrir, reinventar de tornar-nos um “Sísifo Feliz” que consegue encontrar a felicidade ao se revoltar contra a falta de esperança e a desconexão de si mesmo.

Nas próprias palavras de Camus, não podemos esquecer que “a vida é um absurdo, absurdo contraditório. Se não pensada, estamos condenados ao castigo de Sísifo. A eternidade do vazio, de tarefas e trabalhos inúteis”.

Referências

https://medium.com/margin%C3%A1lia/o-mito-de-s%C3%ADsifo-e-a-nossa-batalha-di%C3%A1ria-do-cotidiano-3af77242f409

CAMUS, Albert. A liberdade Absurda. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo.

CAMUS, Albert. O absurdo e o suicídio. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo.

MEIER, Celito. Filosofia: por uma inteligência da complexidade. Volume Único. IBEP. São Paulo: 2010.

📷 Watching For Boats | William Bromley (English, 1835-1888) | Imagem reprodução