Por que às vezes não me reconheço?
O apóstolo Paulo, em sua carta aos Romanos faz um depoimento que é extremamente atual, apesar de escrito há quase 2000 anos. Diz ele:
“Efetivamente, eu não compreendo nada do que faço: o que eu quero, não o faço, mas o que eu odeio, faço-o” (BÍBLIA, Romanos 7, 15)
Ora, por muitas vezes é muito difícil interpretarmos nós mesmos. Veja, num momento estamos felizes, minutos depois angustiados… num momento queremos ficar junto das pessoas, minutos depois, nós enjoamos e queremos mais é ir embora para a nossa intimidade. Parece que temos emoções e sensações difíceis de compreender. E acontece em segundos… feliz/triste, em paz/angustiado, solidário/egoísta, santo/pecador, motivado/preguiçoso e por aí vai.
Não obstante, parece que essa aparente dicotomia também me leva a alguma frustração, porque apesar de saber a importância daquela dieta, do meu projeto, do abandono dos vícios, do cumprimento dos prazos; me vejo por vezes fazendo exatamente o contrário.
Quando criança, usava muito a expressão “estou com quero, mas não quero”. Mas, por que às vezes não me reconheço?
Pois bem, Carl G. Jung em sua teoria representa o ser humano como um ser polarizado. Em outras palavras, ele diz que somos os contrários como sensação e intuição, pensamento e sentimento, de modo que geralmente temos um lado mais desenvolvido que o outro, porém, o equilíbrio é muito importante. “Esses quatro tipos funcionais correspondem às quatro formas evidentes, pelas quais a consciência se orienta em relação à experiência”. (JUNG, 2008. Pág. 74)
Essa luta dos contrários na história da filosofia antiga iniciou-se da observação da natureza (physis) e ao passar do tempo foi integrada na avaliação do ser humano em sua interioridade. Heráclito, filósofo grego de Éfeso, que viveu entre os séculos VI e V a.c., dizia que existe uma harmonia entre os contrários. “E, na harmonia, os opostos se coincidem: O caminho da subida e o caminho da descida são um único e mesmo caminho. (…) No círculo, o fim e o princípio são comuns (…) o desperto e o adormecido, o jovem e o velho são a mesma coisa (…) Assim, “tudo é um”.” (REALE, 1990. Pág. 37).
Mas afinal, como saber quem sou e, mais do que isso, como integrar-me nessa luta de contrários que me faz um desconhecido para mim mesmo?
Conhecer
O fato é que esse debate não é novo, mas torna-se muito atual quando identificamos na sociedade uma segregação por raça, sexo, preferências políticas, etc. Tudo polarizado. Também chama a atenção que com as mídias sociais o discurso torna-se cada vez mais ácido, preferindo o ataque ao diálogo, o que cria inimizades e para impor o seu pensamento, a pessoa busca aniquilar o oponente que deixa de ser as ideias e passa a ser a pessoa.
Cabe ainda citar que – nessa batalha interior dos contrários – ninguém é 100% uma coisa só e nessa avidez em criticar, qualquer descuido é o suficiente para que a artilharia tome rumo contrário e a pessoa é atingida por um turbilhão de críticas. Não precisamos ir longe, basta uma rápida leitura sobre a edição 2021 do Big Brother Brasil (BBB), em que pessoas com fortes posicionamentos acerca de um tema, tiveram comportamento oposto e por isso foram muito criticados. Perceba que a crítica não é pelo posicionamento em si, seja lá qual for, mas pelo fato dessas pessoas se sentirem no direito de humilhar as outras como se vivessem um politicamente correto que não considera a realidade dos contrários.
O primeiro passo, portanto, para identificar os nossos contrários é o autoconhecimento. Parece clichê, pois sempre voltamos nele, mas é fundamental. Faça um quadro com lados opostos de Pensamento (em cima), Sentimento (em baixo) e Sensação (lado direito) e Intuição (Lado esquerdo). Trace duas linhas (horizontal e vertical) que se cruzam ao centro e busque identificar como você reage às circunstâncias da vida.
Tenha a coragem também de escrever quais são os seus contrários, ou seja, quais são os sentimentos, os pesos, as ocasiões e pessoas que não te deixam fluir em direção aos seus objetivos. Uma forma simples de começar esse exercício é observar como agimos em casa e em público. Certamente será fácil identificar os contrários.
Reconhecer
O apóstolo Paulo termina o trecho de seu relato com uma frase igualmente importante e libertadora:
“Eis-me, pois, ao mesmo tempo sujeito pela inteligência à lei de Deus e pela carne à lei do pecado” (BÍBLIA, Romanos 7, 25)
Ora, se Paulo, o apóstolo, autor dos primeiros livros do novo testamento e reconhecido santo, reconhece a sua dualidade – até de forma pública – por que diabos nós temos que viver sob uma máscara o tempo todo?
Sim, trata-se de uma provocação. Provocação filosófica. E nesse texto quero convidá-lo a ir além da superfície e utilizar de recursos religiosos para isso não é por acaso.
O fato é que crescemos em ambiente racional, o politicamente correto, em que cada coisa se encaixa em seu devido lugar. Entretanto, na realidade ninguém se encaixa e crescer no seio familiar, religioso, escolar, dentre outros pode ter sido um peso para você e para mim. No entanto, precisamos dar o próximo passo.
Ao invés de julgar os outros, busque com humildade conhecer e reconhecer-se como uma pessoa que apesar de buscar ser boa, nem sempre é. Somos todos imperfeitos. Ferimos, machucamos sem querer… e às vezes querendo; mas isso nos torna ainda mais humanos. Reconheça.
Assumir a imperfeição
Finalmente, após conhecer e reconhecer, precisamos assumir as nossas imperfeições. Precisamos integrar em nós os pontos positivos e negativos. Saber olhar o lado bom das coisas ruins também é uma virtude, muito necessária para nossa caminhada na busca da liberdade interior.
Se por um lado, eu quero e desejo ser uma pessoa afetuosa com os filhos, e isso significa ser amável e bondoso o tempo todo, por outro lado, acabo por ter pensamentos de raiva e aplico-lhes severa punição. Ora, é evidente que queremos ser bons e amáveis o tempo todo, mas se for apenas assim, corro o risco de não dar a devida educação e correção. Ambos os extremos são importantes para a minha vida, mas o equilíbrio é que me trará uma resposta adequada para a realidade.
É preciso dialogar o tempo todo comigo mesmo e botar os polos para brigar, argumentar e enfim chegar a um equilíbrio. O equilíbrio entre os polos é que me ajudarão a uma sadia convivência comigo mesmo e com os outros.
Eu não sei quem sou
À medida em que dialogamos com franqueza, vamos percebendo o cerne da nossa vida. Aquilo que efetivamente somos, independente do que deveríamos ser de acordo com nossa formação. Assumir ao invés de reprimir os meus conflitos, vícios, limites e até a minha maldade é fundamental para que eu consiga me integrar e viver a vida de forma livre, leve e feliz.
Se você está disposto a isso, seja bem-vindo mas, conselho de amigo, não tenha pressa. O que importa não é o ponto de chegada, mas o caminho em si. Também estou nesse processo. Caio, mas me levanto e busco ser mais humano.
Referências
BÍBLIA, N. T. A. T. In BÍBLIA. Português. Tradução Ecumênica sob direção de Gabriel C. Galache. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
JUNG CARL. G. O homem e seus símbolos. 2a edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
REALE, GIOVANNI. História da Filosofia Antiguidade e Idade Média / Giovanni Reale, Dario Antisseri. São Paulo: Paulus, 1990.
📷 Staande vrouw voor een spiegel (1874 – 1925) | Jan Veth (Dutch, 1864-1925) | Imagem reprodução