O espaço sagrado em tempos de isolamento social
Na obra “O Sagrado e o Profano”, Mircea Eliade afirma que o espaço não é homogêneo: ao contrário, possui diferenças qualitativas que distinguem de forma clara o Espaço Sagrado, cheio de significado e importância, e os demais outros espaços, que naturalmente não sagrados, mas sim profanos.
O Espaço Sagrado está na experiência primordial da criação do mundo. O caos inicial, sem vida e sem forma, é transcendido pela manifestação do Divino que funda um novo espaço, o Centro, cheio de ordem e separado de todo o resto. Da teoria do Big Bang, passando pelos textos juidaíco-cristãos de criação do mundo, até os relatos de povos primitivos da América, o surgimento do Espaço constitui um evento necessário, pois para que haja um começo, um ponto fundante é igualmente preciso. Assim, na natureza do Espaço Sagrado está também o mais profundo sentido da existência humana.
Apesar de uma linguagem carregada de elementos religiosos – afinal, o livro busca entender a sociologia das concepções de Deus – não se é estranho entender a fragmentação do espaço em termos alheios à religião. Uma casa ou parque da sua infância, o local onde encontrou ou viu o seu amor pela primeira vez, ou até mesmo uma praça ou rua que lhe agrade a visita constante são espaços distintos, cheios de significado, e portanto, à parte dos demais… Torna-se assim, um Espaço Sagrado mesmo que de forma subjetiva.
O advento da pandemia causada pelo COVID-19 acabou impondo a todos, uma prática de isolamento social, que não somente priva as pessoas do contato humano, mas também as separa o Espaço Sagrado. Desta forma, muitas pessoas não sofrem apenas da privação de interação com outras pessoas, mas também por serem obrigadas a se manterem no espaço comum e sem significado onde se encontram.
Mais que isso, graças às tecnologias atuais, muitas pessoas não precisam mais do espaço de trabalho para realizarem as suas tarefas laborais. O escritório da empresa agora se funde à sala de estar, quando não em alguns casos ao próprio quarto, tornando o espaço de lazer, descanso e trabalho o mesmo, distinto apenas pelo tempo e a atividade executada. O mesmo se passa com milhares de estudantes que foram obrigados a trocar as carteiras da escola pela camas dos quartos.
Antes que chegue a esta questão, é oportuno dizer que tal reflexão não se apresenta como uma apologia à volta das atividades, expondo pessoas desnecessariamente à grave pandemia. O ponto central aqui é entender que há pessoas que enfrentam dificuldades em suas novas rotinas diárias, basicamente porque a concepção do Espaço Sagrado está na base do entendimento humano. Vários alunos e trabalhadores podem apresentar um “rendimento” inferior ao esperado, simplesmente porque não conseguem dessacralizar o significado de um espaço, agregando-lhe ou dando-lhe um novo sentido.
Por fim, é preciso estar atento a esta nova realidade e ainda adicionar uma dose de empatia às relações humanas. É preciso entender que este novo espaço pode representar o não ser absoluto. “Se, por desventura, o homem se perde no interior dele, sente se esvaziado de sua substância ‘ôntica’, como se se dissolvesse no Caos, e acaba por extinguir-se” (Eliade, 1992, p 35). As mudanças drásticas que o mundo contemporâneo impõe ao ser humano exigem uma ação desenvolvida desde os primórdios da humanidade: significar o espaço e ordenar o cosmos, posicionando o ser humano no centro de toda história.
Referências
Eliade, Mircea. O Sagrado e o Profano. tradução Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992
📷 Landscape with a House 2 | Nicaise De Keyser (Belgian, 1813 – 1887) | Imagem reprodução