Natal: A felicidade vem chegando

20 de dezembro de 2021

“Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens” (Lc 2, 14a)

A vida humana é marcada por diferentes ciclos. Alguns deles, devido a sua importância, são celebrados anualmente e transmitidos para as gerações futuras como parte valiosa de uma herança cultural recebida. No meio de tantas datas e feriados celebrados ao longo de cada ano, o Natal possui uma particular relevância pela grandeza do significado da data em si. E antes mesmo que aqueles leitores desgostosos de temas “religiosos” saltem para outra página e abandonem esta provocação, é preciso dizer que o Natal pode revelar muito sobre os seres humanos em aspectos não necessariamente ligados à questão teológica. A antropologia encontrada em um tema tão intenso e complexo como o Natal é também extremamente simples e intuitiva. O Natal é cheio de paradoxos e talvez essa seja a grande essência da vida humana.

O primeiro paradoxo revelado no Natal está diretamente ligado às buscas diárias de cada ser humano, ou seja, a felicidade. Mesmo dois mil anos depois do “Natal”, o ser humano ainda procura pela felicidade, sem ter uma receita pronta para ela. Pense nos muitos avanços científicos, arquitetônicos, tecnológicos e culturais que a civilização desenvolveu ao longo dos anos. Nem é preciso ir muito longe: pense na variedade de avanços do último século, da última década… No entanto, a felicidade ainda se apresenta como um tema estranho, muito explorado e pouco realizado.

 

Um convite à felicidade

O Natal celebra o nascimento de um menino, nascido de uma mulher, no meio dos animais porque não havia espaço para eles nas casas e hotéis da cidade (Lc 2, 7). Percebe o paradoxo? Parafraseando, a felicidade vinha até aquela cidade, no ventre de uma mulher e na figura de um menino, mas a população estava ocupada demais, trabalhando e se esforçando a buscar a realização dos seus sonhos.

Tomás de Aquino na seção sobre Jesus da Suma Teológica diz: “Ora, a esse fim de [felicidade] os homens são levados pela humanidade de Cristo” (III, 9, 2). Portanto, o Natal é este convite direto e simples à uma reflexão sincera sobre a felicidade que se deixa encontrar no gesto inusitado de um recém nascido envolto em faixas. Paradoxalmente, a felicidade, tanto buscada por todos, estava mais próxima do que imaginavam, bastaria estar aberto para perceber.

É na relação entre existência e felicidade que podemos vislumbrar outro paradoxo à luz do Natal. A felicidade não é um conhecimento, nem uma doutrina e tão pouco uma ciência. Diferente de todas as outras necessidades humanas, a felicidade não necessita de uma busca, nem de uma procura incansável e muito menos de um esforço sobrehumano para alcançá-la. A felicidade exige acolhimento. Agostinho ilustra muito bem esta atitude: “Buscava [a felicidade], e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus”. Em suma, trata-se de uma abraço verdadeiro e sincero à humanidade de Jesus – celebrada no Natal – que é também a humanidade de todas as pessoas.

A felicidade é portanto inerente à existência humana. Então, o Natal torna-se um convite à introspecção, encontrando-se com sua essência e felicidade ao mesmo tempo. Uma vez mais Agostinho, ou como prefiro chamar, o filósofo da felicidade, poetisa com seu pensamento: “Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti”. Cabe aqui a pergunta paradoxal deixada pelo filósofo: a felicidade está com você, independentemente do que faça, mas será que você está com ela?

 

Como encontrar a felicidade?

O texto de Lucas apresenta mais um paradoxo sobre o Natal: “De repente, uma grande multidão do exército celestial apareceu com o anjo, louvando a Deus e dizendo: ‘Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens aos quais ele concede o seu favor’” (Lc 2, 13-14). O coração deste paradoxo é formado por um pequeno “e” que cria uma condição necessária à Glória de Deus. Em outras palavras, não existe a glória de Deus sem a paz na terra. As duas partes são dependentes uma da outra. Deus não necessita de glória alguma, porém se ela existe, deve estar conectada à paz da humanidade.

A paz que emana da cena do Natal – daquele menino envolto em paninhos numa manjedoura, amparado pelos seus pais, cercado por animais, e acolhido pelos pastores – é o fruto de todos que acolheram e abraçaram a felicidade naquela noite fria. Não há paz sem felicidade, e nem felicidade que não produza paz.

Se abraçar a felicidade lhe parece uma tarefa complexa e você não tem a menor ideia por onde começar, talvez este possa ser seu ponto de partida: pergunte-se sobre o que te traz ou te tira a paz. Reconhecer os efeitos é uma boa forma de identificar as causas.

Feliz Natal!

Referências

https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf Santo Tomás, Suma Teológica III, Questão 9, Artigo 2.

https://img.cancaonova.com/noticias/pdf/277537_SantoAgostinho-Confissoes.pdf 

Agostinho, Confissões. Livro VII, Capítulo 18.

Agostinho, Confissões. Livro X, Capítulo 27.

📷 Madonna With The Infant Christ Child Holding A Goldfinch On A String | Giovanni Battista Salvi da Sassoferrato (Italian, 1609 – 1685)