Não subestime a inteligência das pessoas
Vivemos em tempos em que as pessoas estão muito cheias de certeza, sempre com uma opinião formada, com orgulho e a presunção de que sabem de tudo. Com tal atitude, semeiam discórdias, preconceitos, divisões e violência, sobretudo virtual. Ora, quem sabe tudo não aprende nada, certo?
Mas será que o nosso jeito de enxergar as coisas é o mais correto sempre? Será que os nossos conceitos e preconceitos às vezes não nos enganam? Será que não podemos nos abstrair de nós mesmos para observar as pessoas, as crenças, os comportamentos ou as circunstâncias com respeito e curiosidade?
Pois bem, quero trazer uma provocação que muitas vezes nos perturba: será que a nossa sede de ter sempre a razão não nos leva a subestimar a inteligência das pessoas?
Husserl e a epoché
Edmund Husserl (1859-1938) foi um filósofo alemão, fundador da Fenomenologia, que é um método de apreensão das coisas na consciência. Seu pensamento teve (e continua tendo) grande influência nos séculos XX e XXI e destaco aqui o conceito de epoché.
Pense comigo. É natural que ao observarmos as pessoas, as coisas e as circunstâncias da vida nos venha à mente um julgamento. Assim como ao colocarmos os óculos escuros as coisas se tornam mais escuras, é a partir desse juízo que eu enxergo o mundo e, portanto, crio preconceitos das coisas ou seja, conceitos prévios.
Nesse sentido, a epoché é a suspensão deste juízo, ou seja, eu deixo de lado aquele impulso do julgamento, dos preconceitos, das teorias para observar as coisas como elas são em si mesmas. Imaginem como um arqueólogo que encontra um objeto e procura nele mesmo identificar para que ele serviu no passado.
É evidente que não esgoto aqui o conceito de epoché, não é esse o objetivo desse texto, mas quero – a partir do conceito – trazer um exemplo de uma mudança radical de vida a partir da humildade e da experiência intelectual.
Edith Stein e a busca pela verdade
Edith Stein (1891-1942) foi uma filósofa e teóloga alemã, de origem judaica. Ainda jovem dedicou-se ao estudo da fenomenologia e chegou a ser assistente do filósofo Edmund Husserl, fundador dessa corrente filosófica. Apesar dos limites ao acesso à informação e formação a que as mulheres eram submetidas na época, Stein era reconhecida por uma busca radical à verdade.
Essa busca pela verdade a levou, de modo natural, a desenvolver uma grande capacidade intelectual e uma sede de conhecimento.
Aos 15 anos, Stein teve uma crise de fé, deixando de lado as orações e a infância devota aos preceitos judaicos. Aos 21, impressionada pela obra investigações lógicas, foi estudar com Husserl e Scheler, tendo mais adiante nota máxima em seu doutorado.
Nessa grande biografia, um aspecto importante na vida de Edith Stein foi a sua conversão ao catolicismo. Mais do que uma conversão religiosa, o foco aqui é a conversão de uma forma de pensar, colocando em prática a sua sincera busca pela sabedoria e pela verdade.
Duas passagens importantes de sua vida foram fundamentais para sua conversão.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Edith trabalhou como enfermeira na Cruz Vermelha e testemunhou muito sofrimento e, dentre eles, destaca-se a morte de um amigo filósofo muito próximo. Ao encontrar a esposa da vítima, também amiga dela, Edith surpreendeu-se com a serenidade com que lidava com a morte do marido. Era uma mulher cristã que entregava a sua dor a Deus por meio da fé. Talvez, para a maioria dos que se dizem intelectuais, a atitude primeira seria rejeitar tal atitude, dizendo que a pessoa é humilde, não tem conhecimento e por isso fala (ou reza) ao vazio. Entretanto, a sua experiência com a filosofia fez com que Stein, naquele momento, aplicasse o conceito se suspensão de juízo e – com humildade – buscou entender o que se passava na cabeça daquela senhora que com tanto fervor conversava “sozinha”. Será que ela estava certa? Será que realmente aquela senhora estava falando com alguém?
A segunda situação, ainda mais determinante, foi durante a leitura da autobiografia de Santa Teresa D’Ávila, cuja identificação com o texto a fez converter-se para o cristianismo e de imediato pedir ingresso na ordem das Carmelitas Descalças.
Aos 51 anos, ela morreu, vítima do nazismo. Anos mais tarde foi canonizada como Santa Teresa Benedita da Cruz.
Atitude de humildade para buscar a verdade
Por fim, destaco a importância de colocar dúvidas sobre as certezas que temos.
Como Edith Stein, talvez tirarmos os nossos óculos cheios de conceitos e preconceitos para observar – com humildade, honestidade e sabedoria – o outro como alguém que deve ser respeitado e que também pode contribuir para a nossa vida, pode nos ajudar a fortalecer os nossos aprendizados e relacionamentos ao longo da vida.
Referências
FRAGATA, J. A fenomenologia de Husserl como fundamento da filosofia. Braga: Livraria Cruz, 1959.
HUSSERL, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre; EDIPUCRS, 2008.
MARTINS, J. Estudos sobre existencialismo, fenomenologia e educação. São Paulo: Centauro, 2006.
Realle, G.; Antiseri, D..História da Filosofia. 6 ed. São Paulo: Paulus, 2003. vol. 1
📷 Portrait of the Swedish Painter Karl Nordström (1882) | Christian Krohg (Norwegian, 1852-1925)