É possível evitar as preocupações?

11 de abril de 2023

Não é possível evitar a preocupação.

Sim, são muitos os livros que trazem essa promessa. Também são muitos aqueles que dizem que se você for rico, praticar esportes diários, se você tiver a própria casa, um carro esportivo de luxo, uma renda passiva e uma alimentação saudável, terá uma vida despreocupada, plena e satisfeita.

Ora, todas essas coisas são boas, mas não vão te tirar a preocupação.

O filósofo alemão Martin Heidegger vai tratar o ser humano na essência como um ser-no-mundo, sendo o “mundo” tudo o que nos circunda e com isso ele afirma que o ser humano em seu princípio existencial é um ser de relação. Não existe a humanidade solitária. Ao nascer “entramos” em um mundo que nos precede, ou seja, o hospital, os médicos, nossos pais e familiares, já existiam antes de nós e cuidaram da gente.

O cuidado e a relação são partes constitutivas do ser humano saudável, pois ele é cuidado desde o início de sua trajetória como ser humano.

Deste modo, Heidegger abrange que a existência humana está fundamentada nas suas relações, na sua capacidade de ser fora de si mesmo. E a essência e existência estão ligadas ao tempo, o que é transitório, a medida em que o homem se ocupa e preocupa com o momento atual e a construção do futuro.

Quando nascemos, somos cuidados por nossos pais. Existe uma relação de amor em que o cuidado é fundamental para a vida do bebê. Do mesmo modo, é curioso o fato de que ao longo da vida, também gostamos de nos sentir cuidados e amados. Desde ser escolhido para o time de futebol da escola até perceber a preocupação de nossos cônjuges sobre a nossa saúde e bem estar.

Porém, para além do cuidado que recebo e da relação comigo mesmo, há também o cuidado e a relação com o outro.

O cuidado é uma necessidade humana

O cuidado faz parte da maternidade e da paternidade. O planejamento familiar, a espera e preparativos para receber a criança são coroados com o nascimento em si. Ainda que haja alterações na rotina, no sono e nos custos, o ato de cuidar continua não como um peso, mas como uma necessidade. Os pais precisam amar os filhos. Ainda que por um momento ou desabafo a pessoa diga o contrário, cuidar dos filhos é uma necessidade dessa relação.

E esse ato de cuidar se estende ao longo da vida. À medida em que nos percebemos e criamos vínculos com as pessoas, cuidamos dos pais, dos amigos, dos vizinhos, dos namorados, etc. Nos preocupamos não como quem está ansioso e desesperado, o que seria uma forma de possessão ou controle do outro. Nos preocupamos com os nossos queridos e gostamos disso. É como se isso fizesse parte do meu “eu” e o meu encontro comigo mesmo se dá também na relação com o outro e por isso prezo por cuidar dessa relação.

Fugir das preocupações

Muitas vezes fugimos das preocupações porque temos uma visão desmedida ou relacionamentos que não são saudáveis com pessoas que sugam a nossa energia e, por isso, não queremos nos comprometer com o outro. Também é importante a sinceridade conosco mesmo quando nos deparamos com pessoas que têm mais sucesso ou realização do que nós e por isso não queremos nos ocupar dessas pessoas. Um exemplo extremo é o caso de Caim e Abel.

Já no primeiro livro da Bíblia, após o assassinato de Abel, Deus pergunta a Caim “Onde está teu irmão?”. E Caim res­pondeu: “Não sei! Sou porventura eu o guarda de meu irmão?”. Ora, tanto a pergunta quanto a resposta são muito interessantes.

Ao perguntar sobre Abel, Deus nos provoca a olhar uns pelos outros, como uma característica humana que é o fato de cuidarmos uns dos outros. E, por sua vez, Caim responde como se nada tivesse a ver com a vida do irmão. Ora, ao recordar a história, a razão do assassinato de seu irmão Abel pelas mãos de Caim se deu porque ele não aguentou o sucesso de seu irmão. E, segundo ele, o peso de aniquilar uma pessoa por tal motivo era “pesado demais para suportar”. Evidente que estamos fazendo aqui uma analogia (e não justificando um crime), mas o quanto fingir que o sucesso alheio não nos impacta (positiva ou negativamente) pode ser um pesado fardo para as nossas vidas (consciente ou não).

Deste modo, é necessário separar o que são as preocupações desnecessárias e ansiosas daquelas que nos levam ao encontro do outro.

Na preocupação pode se esconder a paz

Um relacionamento que nos leva a buscar uma preocupação desmedida, que me leva a cercear a liberdade do outro, torná-lo dependente de minha proteção e ser alvo de minhas chantagens emocionais não é saudável. Também devo observar o quanto eu não sou vítima de um relacionamento assim, condicionando os meus passos apenas à vida ou opinião de alguém.

Não gosto de romantizar a ideia de preocupação. Ela pode ser dura e difícil para muitos, sobretudo as vítimas de exageros. Mas, também não é justo com a gente mesmo ocultar a realidade de que nos preocupar e querermos cuidar e sermos cuidados, numa postura de herói ou heroína, também não nos deixa felizes.

Deixar fluir o amor natural que está em nós e querer proteger o amado nos aproxima de nossa essência. A ansiedade e amargura se tornam um desejo de fazer o bem e cuidar da pessoa querida. Isso nos alegra e nos traz paz, porque nos preocupar com as pessoas é uma característica essencialmente humana. Quanto mais nos permitimos sermos humanos e não apenas uma imagem positiva diante do mundo, mais nos abrimos ao nosso ser-no-mundo.

Referências

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 14ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.
STEIN, Ernildo. Martin Heidegger: conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural Ltda, 2005. (Coleção Os Pensadores).

📷 The song of the angels (1881) | William Bouguereau (French, 1825-1905)| Imagem reprodução