É possível cancelar a cultura do cancelamento?

1 de maio de 2023

Atualmente, a cultura do cancelamento se caracteriza por um esforço coletivo de uma comunidade para ‘boicotar’ alguém por suas ações ou palavras, que são consideradas como tendo violado as normas sociais existentes. Porém, um artigo da BBC questiona sobre o alcance da cultura do cancelamento nos Estados Unidos, que tem gerado questionamentos sobre a possibilidade de que injustiças sejam cometidas justamente na busca por Justiça.

O fato é que Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, nos ajuda a refletir sobre o impacto do ambiente virtual em nossas vidas reais. Destaco que as pessoas se sentem cada vez mais solitárias e por isso a necessidade de ter um grupo virtual é cada vez mais pujante. Também a facilidade com que se cria comunidades de iguais, em que facilmente se pode adicionar e deletar amigos e, desse modo, há pouco espaço para uma opinião diferente. Finalmente, diz ele que apesar das redes serem globais, “muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras”.

Em resumo, as relações virtuais nos tornam mais vulneráveis e, para nos defender, nos tornamos cada vez mais agressivos. E escondidos em nosso quarto, às vezes com um perfil fake, nos tornamos leões para apontar os “erros” dos outros.

É evidente que não há aqui qualquer apoio ao conteúdo em si. Muitas vezes, a “vítima” do cancelamento traz falas inconcebíveis, desnecessárias, preconceituosas e repudiantes. Porém, o foco do texto não é julgar nenhum dos lados, mas refletir alguns dos motivos que me levam a pensar sobre o tema e olhar para dentro de mim, antes de apontar o dedo aos outros.

A expectativa desmedida

É comum, sobretudo com artistas e celebridades, uma certa revolta quando tratam de temas que divergem da opinião da maioria. Há uma certa frustração. Entretanto, via de regra a frustração é mais um problema de quem se frustra do que de quem é o objeto de frustração.

Atualmente, muitos artistas, atletas e influenciadores vivem como celebridades. A pessoa se torna maior do que a mensagem ou do que a sua arte. E com isso nos confundimos ao invés de buscar no atleta a vitória pelo seu clube, espera dele um alinhamento político ao nosso. Do mesmo modo, uma cantora que se diz indiferente a determinada causa também fere com as nossas expectativas.

Procuro não criar expectativa com relação às opiniões e ações dos outros. Isso me ajuda a focar apenas na mensagem que a pessoa traz, seja uma música, uma poesia, um belo filme ou um gol no domingo à tarde.

Indignação e revolta

Há também de forma desmedida a indignação e revolta.

Indignar-se com os outros significa tornar o outro sem dignidade, um sentimento de desprezo. Por sua vez, a revolta é a resistência, geralmente violenta, contra determinada autoridade ou ordem estabelecida. Interessante observar que nesse caso atribui-se um nível de autoridade àquele a quem me revolto. Desse modo, há também no sentimento de indignação e revolta a ideia de uma expectativa frustrada, ou seja, apostei as minhas fichas em alguém que não me representa, ou mesmo, coloquei a mão no fogo e me senti de certo modo traído.

Por vezes se estimula esses comportamentos até em nome de uma religião, desprezando a máxima de buscar a reconciliação e de evitar o julgamento, mas, antes, olhar primeiro para si mesmo.

Colocar-se acima dos outros

Não me sinto especial e nem melhor que os outros.

Para o filósofo francês Michel Foucault (1990), a verdade não existe fora do poder ou sem poder. Cada sociedade tem um regime próprio de verdade e cria estruturas para lidar com elas e corrigir o que o grupo não considera verdade. Na prática, existe uma certa política geral que julga os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros.

Nesse contexto, por vezes somos impelidos a condenar pessoas que não concordam conosco ou que proferem pontos de vista – políticos e/ou religiosos – diferentes dos meus.

Ao apontar o dedo para uma pessoa, considero que eu esteja certo. De certo modo, me coloco acima dos outros, como mais sábio, mais esclarecido ou com uma melhor análise das informações.

É notório também que se observa, sobretudo no campo virtual, pessoas atacando as outras apenas para participar de determinado grupo. De acordo com a autora Kendra Cherry a necessidade de pertencer a um grupo também pode levar a mudanças de comportamento, crenças e atitudes à medida que as pessoas se esforçam para se adequar aos padrões e normas do grupo.”

E os nossos próprios erros?

Eu erro. E, neste caso, acolher o outro como alguém que também erra torna a relação mais fluida. Existe sempre a possibilidade de que um determinado post que me ofendeu pode ter sido uma frase fora do contexto, uma colocação mal feita ou mesmo escrito em um momento que a pessoa não está bem. Isso também pode acontecer comigo.

Referências

FOUCAULT M. As palavras e as coisas. 5. ed. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martin Fontes, 1990.
FOUCAULT M. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
FOUCAULT M. Os anormais. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

📷 The duck pond (1918) | William Pratt (English, 1855-?)| Imagem reprodução