É possível amar a quem eu não gosto?

21 de março de 2023

O padre e santo católico Pedro Julião Eymard, que viveu no século XIX, notou que em seu tempo havia certo distanciamento da igreja e do povo, e trabalhou para reduzir essa lacuna ao fundar institutos religiosos, mas, mais do que ele fez, importa reforçar o seu modo de vida e sobretudo suas reflexões. Na tônica da adoração eucarística e do amor, nos disse uma frase que percorre os séculos. Disse ele que “Amor sem sacrifício é amor próprio disfarçado”.

Pensamento surpreendente e impactante. Ora, amar implica sair do meu comodismo e ir ao outro, acolher a pessoa na condição em que ela está e, por muitas vezes, ela tem posições contrárias às minhas, podendo me magoar e até me causar feridas emocionais.

Nesse sentido, também podemos trazer ao debate o pensador francês Jean-Paul Sartre, que dizia que a outra pessoa tira parte da minha autonomia e expõe as minhas fraquezas, por isso a relação com o outro é um “inferno”, mas, segundo ele não podemos agir sem rumo, mas refletir as nossas escolhas e o nosso projeto pessoal. E penso que aqui está a chave da questão.

Amar a todos

Amar a todos, independente se gosto ou não, vai além de uma lista de coisas a fazer, mas apenas duas decisões são necessárias: conhecer o seu propósito e buscar alcançá-lo.

Quando eu conheço o meu propósito, começo a pensar a longo prazo. Não é algo para hoje ou amanhã, mas para daqui 5 ou 10 anos. E quando eu estabeleço uma série de avaliações e monto o meu projeto pessoal de vida para alcançar o meu propósito, estabeleço as ações e cronograma para executá-lo.

Ao criar metas mais amplas, alinhadas com o meu propósito, as “picuinhas” do dia a dia, ou seja, os deboches, pirraças, alusões, indiretas, piadas, sátiras, perdem o peso na minha vida. Viktor Frankl dizia que “quem tem um porquê enfrenta qualquer como”, ou seja, quando temos uma meta e olhamos para a frente, a vida passa a ter um sentido e o jogo muda.

O amor é exigente

Evidente que há sacrifício. Preciso me livrar de um “eu” que pode em alguns momentos só pensar em si mesmo e diz que ama as pessoas apenas pelo que elas podem me retribuir. Nesse sentido, é apenas amor próprio (disfarçado). Porém, a visão de propósito tende a melhorar os meus relacionamentos e me abre para amar de forma autêntica.

Você já observou que as pessoas ao longo da história que manifestaram e são reconhecidas pelo amor que exerceram pelos outros, invariavelmente tinham um propósito claro?

Nesse contexto, para amar até aqueles a quem não gosto, preciso primeiro amar a mim mesmo, aceitar a minha história e construir o meu propósito e projeto pessoal de vida. Deste modo, as divergências de opiniões, mágoas e ressentimentos perdem força e a minha visão de propósito me ajuda a superar e entender que nem todos estão na mesma sintonia. Ao invés de aniquilar a pessoa, posso oferecer ajuda para que ela também se encontre na vida.

O cuidado com as relações tóxicas

Enquanto o “amar” é sólido e de longo prazo, que tem relação com meu propósito, o “gostar” está mais relacionado a afinidades. Eu gosto daquilo que me agrada. Portanto, não tenha medo de abrir-se ao encontro do outro amando, respeitando e querendo o bem de todos, mas, por outro lado, também não tenha receio em livrar-se de relacionamentos tóxicos, de pessoas que não te querem ou não te fazem bem. Veja que a diferença é clara.

Amar não significa anular-se, mas acolher o outro sem interesses ou julgamentos e apoiá-lo se necessário.

O risco está em querer ajudar os outros antes de nos ajudarmos, ou seja, a partir do nosso autoconhecimento, reconhecer os nossos limites. Todos somos vulneráveis. Por exemplo, se tenho uma tendência de exagerar na bebida, não é prudente ajudar um alcoólatra na mesa de um bar. Ao contrário, posso manifestar minha solidariedade e com amor, ouvi-lo em outro ambiente e indicar especialistas para apoiá-lo.

Não cabe a nenhum de nós resolver os problemas dos outros. O próprio Jesus Cristo dizia após um encontro com alguém que pedia sua ajuda a frase “vá e não peques mais”, o que nos ensina que existe um limite até onde podemos chegar e, a partir daí a decisão e passos são exclusivamente da pessoa. E, no exemplo acima, se não me conheço o suficiente para lidar com a suposta tendência ao alcoolismo, o mais provável é que ao invés de ajudá-lo eu me torne um alcoólatra também.

O amor liberta

Ao criar uma visão de propósito e um projeto pessoal de vida e nos libertarmos das picuinhas do dia a dia, estamos preparados para dar um passo mais largo rumo à nossa liberdade interior. Ora, já não preciso ganhar as discussões no debate dos almoços em família, não preciso resolver as dívidas e problemas dos amigos, não preciso exigir que o outro pense como eu… aliás, na maioria das vezes não preciso nem expor os meus pensamentos e posições. Apenas ouvir e acolher.

Muitas vezes a raiva que criamos dos outros é, na verdade, o desconforto do confronto dito por Sartre. É a revelação que aquilo que pensamos pode não ser a verdade do mundo e nos faz repensar.

Há uma passagem na vida de Jesus em que Ele fala que “se alguém bater em você numa face, ofereça-lhe também a outra”. Frase muitas vezes dita e pouco compreendida. Não se trata de gostar da dor ou deixar que o outro lhe faça mal, mas sim de ignorar aquela tentativa de atingir o seu coração. É dar o peso correto às palavras dos outros, observando o seu propósito maior e despreocupado com uma imagem de vencedor de debates, de mais inteligente, etc.

Portanto, cuide-se, ame-se e não tenha referências de amor nas mídias sociais apenas. Busque biografias daqueles que fizeram história e se doaram pelos outros. As lições que nos deixaram e a forma como as faziam. Nós podemos sim tornar a vida dos outros melhor e o segredo pode estar em buscarmos uma vida melhor para nós mesmos.

Referências

📷 Le secret d’Amour | Guillaume Seignac (French, 1870-1924) | Imagem reprodução