Como lidar com a inveja?

24 de junho de 2024

Conta-nos um relato bíblico que “quando Davi voltou, depois de ter matado o filisteu, as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, dançando e cantando alegremente ao som de tamborins e címbalos. E, enquanto dançavam, diziam em coro: “Saul matou mil, mas Davi matou dez mil”. Saul ficou muito encolerizado com isso e não gostou nada da canção, dizendo: “A Davi deram dez mil e a mim somente mil. Que lhe falta ainda, senão a realeza?” E, a partir daquele dia, não olhou mais para Davi com bons olhos. (…) Saul falou a Jônatas, seu filho, e a todos os seus servos sobre sua intenção de matar Davi.” (1Sm 18,6-9.19,1).

Apesar de não nos conformarmos quando nos deparamos com a inveja alheia, importa sempre nos lembrar que por vezes sofremos em alguma intensidade do mesmo mal. Por isso, esse texto objetiva uma visão realista sobre a inveja, em que possamos entender o que é, seus gatilhos, assumirmos as nossas imperfeições e impulsos e buscar usar esse sentimento em nosso favor.

 

O que é inveja?

De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, inveja é a “1. Desgosto pelo bem alheio; 2. Desejo de possuir o que outro tem, geralmente acompanhado de ódio pelo possuidor.” Em outras palavras, a inveja é uma forma desequilibrada do desejo que temos pelas conquistas dos outros.

Um dado interessante é que a inveja cria uma satisfação imaginária, em que eu atribuo os meus possíveis sentimentos ao obter o objeto (ou situação) de desejo no sentimento do outro. Simplificando, quando invejo o smartphone da outra pessoa, tendo a imaginar que a outra pessoa dá ao smartphone o mesmo valor que eu daria. Portanto, trata-se de uma realidade superficial, em que projeto no outro os meus sentimentos e ao imaginar que o outro possa estar sentindo o que eu penso que ele está sentindo, isso faz com que eu passe a considerar o outro uma ameaça ao meu bem-estar. Lembra do caso de Saul?

No fundo, todos temos pontos positivos e negativos, mas o sentimento de inveja nos faz olhar a grama do vizinho como a mais verde sempre. A frase atribuída a Arthur Schopenhauer, filósofo alemão, nos ajuda a entender essa realidade em que “Ninguém é realmente digno de inveja, e tantos são dignos de lástima!”.

Vejam que não se trata de uma admiração, o que é positivo e nos potencializa a desenvolver em nós metas e propósitos.

 

A inveja anula o outro e a nós mesmos

É claro que a imensa maioria de nós não terá desejo de tirar a vida propriamente dito de outra pessoa, como no caso do rei Saul, mas a inveja nos desperta um sentimento de buscar anular o outro. Notem que o texto diz que Saul “não olhou mais para Davi com bons olhos”.

Do mesmo modo, quando “caímos de cabeça” nesse sentimento de inveja, agimos para matar (ou melhor, prejudicar) o outro, pois por um lado ao invés de admirar os feitos dos outros e buscar uma inspiração para a nossa vida, a inveja frequentemente nos leva a querer anular o outro, depreciar a imagem do outro diante das pessoas, fazemos perguntas desconfortáveis para desestabilizar a pessoa e até minimizamos as suas conquistas. Por outro lado, esse sentimento também nos faz “matar a nós mesmos” porque não nos ocupamos de nós mesmos, olhamos apenas o outro e esquecemos do nosso potencial. Perdemos o foco do nosso projeto de vida.

 

Existem razões para a inveja?

O psicólogo Seth Meyers Psy.D., alerta em seu artigo para o Psychology Today que o sentimento de inveja é natural e que ao longo da vida todos temos. É comum sobretudo nas relações de amizade, quando “você quer o que acredita que outra pessoa tem”.

Novamente voltamos à ideia de percepção do valor que a outra pessoa atribui a algo que valorizamos muito. E, como cada pessoa atribui valor diferente para cada coisa, é complexo listar razões específicas e universais. Mas, para fins de reflexão, Meyers lista sete razões comuns de inveja nas relações de amizade, das quais destaco:

Dinheiro: em que uma diferença na estatura financeira afeta as amizades ao longo da vida, e aos poucos as pessoas passam a buscar “parecer” ter a mesma estatura, piorando esse distanciamento. Atribui-se ao humorista e jornalista americano Robert Quillen (1887-1948) a frase “Muitas pessoas gastam dinheiro que não tem para comprar coisas que não precisam para impressionar pessoas que não gostam”. Será que é o nosso caso?

Porte físico: mais frequente durante a adolescência e no início da fase adulta, em que as pessoas atribuem à sorte o fato de algumas pessoas serem fisicamente mais atraente que outras, a partir de padrões de peso, medida, e características pessoas. Novamente, trata-se de uma percepção, já que cada ser humano possui gostos e preferências diferentes.

Sucesso profissional: está relacionado ao caso do dinheiro, mas o foco é a ascensão profissional entre pares ou mesmo o desenvolvimento da pessoa, quando comparado ao desenvolvimento próprio. Cabe aqui o ditado popular “”o povo só vê as pingas que eu tomo, mas ninguém vê os tombos que eu levo”, pois raramente consideramos o esforço que a pessoa teve para chegar nessa posição.

Mídias sociais: em que as pessoas selecionam fotos de si mesmas em seus momentos mais felizes para transmitir ao mundo a ideia de “sim, temos tudo e somos melhores”.

Somos seres humanos e a natureza nos preparou para a escassez e competição. Ter ciência disso nos ajuda a dar o próximo passo que é usar essas circunstâncias em nosso favor.

 

Como usar a inveja em nosso favor?

O interessante artigo de Utkarsh Amitabh, “How to Make Envy Work For You” (como fazer a inveja trabalhar para você, em tradução livre), no Harvard Business Review traz um método interessante para lidar com o sentimento de inveja, a partir da análise de três passos.

Identificar o gatilho: perguntar-se Qual foi o meu gatilho? Foi uma notícia nas redes sociais? Foi uma rejeição? Alguém realizou algo que eu secretamente desejava poder? Anotar isso me dá orientação e evita mergulhar em uma espiral de negatividade.

Ação: observar nas anotações o que de fato podemos fazer. Algumas coisas não estão sob nosso controle, mas devo me perguntar o que exatamente estou invejando e o que posso fazer a respeito. Precisamos separar a pessoa do atributo que desejo, ou seja, em vez de dizer: “Invejo (a pessoa tal) porque ela atua tão bem”, escrevo: “A habilidade de atuação da pessoa me deixou com inveja. Sinto que não fui bom o suficiente hoje e preciso de mais prática.” Aqui está o “X” da questão, em que podemos nos desenvolver e criar projetos para a nossa vida.

Racionalização: o autor chama de “insight”, mas prefiro chamar de racionalização. Pergunte-se “Eu trocaria de lugar com a pessoa de quem tenho inveja?” Sim ou não? Muitas vezes invejamos partes da vida de outras pessoas, não toda a sua existência.

Eu o convido a retomar a história de Saul e dou mais uma recomendação. Vamos ao texto:

“Então Jônatas falou bem de Davi a Saul, seu pai, e acrescentou: “Não faças mal algum ao teu servo Davi, porque ele nunca te ofendeu. Ao contrário, o que ele tem feito foi muito proveitoso para ti. Arriscou a sua vida, matando o filisteu, e o Senhor deu uma grande vitória a todo Israel. Tu mesmo foste testemunha e te alegraste. Por que, então, pecarias, derramando sangue inocente e mandando matar Davi sem motivo?” Saul, ouvindo isso e aplacado com as razões de Jônatas, jurou: “Pela vida do Senhor, ele não será morto!””( 1Sm 19,4-6).

A dica aqui é simples: cercar-se de pessoas boas.

A história da filosofia é cercada de ótimos exemplos sobre a transmissão de sabedoria. Sócrates, por exemplo, deixou um conhecimento oral, que foi escrito por seu seguidor Platão. E seria possível traçar uma espécie de genealogia do pensamento citando mestres e aprendizes.

Do mesmo modo, tenha a humildade de ouvir, mude de opinião. Racionalize, esclareça os pontos. Não reduza as pessoas ao que te desperta desejo… as pessoas são muito mais que isso. Por outro lado, não se diminua e observe o seu potencial.

Tenha bons mentores e conselheiros com valores sólidos, pessoas que te ajudam a refletir melhor sobre as coisas e acalmar os impulsos.

É muito possível e provável que a pessoa que hoje desperta em você o sentimento de inveja a partir de seus atributos, pode ser uma inspiração para que você atinja os seus propósitos.

 

Mas… somos ambiguidade

Finalmente, seja firme no propósito e realista no projeto de vida. O último trecho do texto que destacamos aqui mostra que Saul, apesar dos conselhos de Jonathas e de firmar o propósito de não matar Davi, Saul fez algumas investidas contra ele.

O texto, que pode ser encontrado na íntegra em 1Sm 24,3-21, diz que Saul saiu para matar Davi, porém Davi o encontrou em posição vulnerável e poderia tê-lo matado, mas decidiu não fazê-lo, cortando apenas uma parte de suas vestes. E com  diálogo a coisa se resolveu.

Quando Saul saiu daquele ambiente, Davi foi ao seu encontro e disse a Saul: ““Por que dás ouvidos às palavras dos que te dizem que Davi procura fazer-te mal?” (…) Não levantarei a mão contra o meu senhor, pois ele é o ungido do Senhor e meu pai.” Quando Davi terminou de falar, Saul lhe disse: “É essa a tua voz, ó meu filho Davi?” E começou a clamar e a chorar. Depois disse a Davi: “Tu és mais justo do que eu, porque me tens feito bem e eu só te tenho feito mal.” (1Sm 24,3-21)

Ora, são dois “ungidos de Deus” que firmam propósito, mas que nem sempre conseguem executá-lo. Foi assim também com os apóstolos, e é assim também com cada um de nós. Precisamos ser realistas.

Neste trecho, Saul reconhece que estava buscando o mal – por inveja devido aos comentários do povo sobre a grandeza dos feitos de Davi – a uma pessoa que é boa. E esse é justamente o resumo do que tratamos até aqui nesse texto, a imagem que fazemos das pessoas e a vontade de aniquilar as pessoas por terem coisas ou feitos que queremos para nós.

Para aprofundar em nossas ambiguidades, recomendo a leitura do texto Por que às vezes não me reconheço?.

Referências

https://www.bibliaonline.com.br/acf/1sm/18 , acesso em 18 de janeiro de 2024.

https://www.bibliaonline.com.br/acf/1sm/19 , acesso em 18 de janeiro de 2024.

https://revista.arautos.org/liturgia-diaria-19-de-janeiro/, acesso em 19 de janeiro de 2024.

https://dicionario.priberam.org/inveja, acesso em 18 de janeiro de 2024.

https://www.psychologytoday.com/us/blog/insight-is-2020/201507/7-reasons-why-we-envy-our-friends-and-vice-versa , acesso em 18 de janeiro de 2024.

https://hbr.org/2021/06/how-to-make-envy-work-for-you , acesso em 18 de janeiro de 2024.

https://filosofiadiaria.com.br/provocacoes/por-que-as-vezes-nao-me-reconheco/, acesso em 19 de janeiro de 2024.

📷 No Love Without Envy (1901) | Eugen von Blaas (Italian, 1843 – 1931) | Imagem reprodução