Ano novo: liberte-se
A cidade onde moro no Canadá, Vancouver, é banhada ao Oeste pelas águas frias do Oceano Pacífico. E acredite, as praias são especialmente geladas nos meses de Dezembro, Janeiro e Fevereiro, quando o inverno atinge o Hemisfério Norte. Assim, frio e água se tornam elementos importantes para a celebração do Ano Novo ocidental para os Vancouverianos.
Com mais de 100 anos de tradição, o “Mergulho do Urso Polar” é a principal forma de marcar a chegada de um novo calendário. Basicamente, consiste em nadar nas águas geladas do inverno canadense por no máximo 15 minutos em uma das praias centrais da cidade. Oportuno lembrar que apesar de conhecida como a “cidade mais quente do Canadá”, a temperatura da água nos últimos anos não passou de 5°C.
Porém, longe de comparar os costumes canadenses e brasileiros, a proposta deste texto está muito mais ligada àquilo que somos como pessoas e como nos identificamos diante do outro. E são as contribuições antropológicas de Max Scheler que nos ajudam a aprofundar sobre o tema. Para Scheler, o homem é capaz de ignorar os interesses vitais que as coisas possam ter para si, e assim, é capaz de captar essências, questionando o que as coisas são em si mesmas.
Traduzindo com o exemplo da tradição canadense, o homem é capaz de ignorar qualquer impulso vital para evitar a hipotermia em águas geladas exatamente porque existe nele uma dimensão que intencionalmente se abre para o mundo. Essa dimensão é portanto caracterizada por “seu desprendimento existencial do orgânico, sua liberdade, sua separabilidade – ou ao menos a separabilidade de seu centro existencial – ante os laços, a pressão e a dependência do orgânico, da ‘vida’ e de tudo o que pertence à vida” (Scheler, 2003, p.36).
Portanto, a intencionalidade que a pessoa humana possui diante do mundo é intensamente expressa nas diversas comemorações do Ano Novo. Cada detalhe, desde um mergulho nas gélidas águas do Pacífico, até o uso de vestes brancas, comer lentilha, entregar ofertas ou realizar saltinhos com pedidos, revelam no fundo uma atitude essencialmente humana de abertura para as coisas e para o mundo. Novos planos, metas, desejos, e sonhos nascem como que misteriosamente do interior de cada um, como se uma nova pessoa surgisse junto com o despertar de um novo dia, em um novo ano.
O dia de Ano Novo é por fim, não apenas um data, mas também um nova atitude de posicionamento diante do mundo. Espero que nossos leitores possam se posicionar com intencionalidades de paz, amor, compreensão, acolhimento, respeito, comprometimento e justiça… O mundo inteiro precisa disso e agradece.
Referências
SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
https://vancouver.ca/parks-recreation-culture/polar-bear-swim.aspx
📷 A Jolly Time | Frederick Stuart Church (American, 1842-1924)