E se não houver recompensa?
Moramos em uma região canadense cercada de montanhas com muitas trilhas disponíveis para aqueles que querem escapar da agitação da cidade por algumas horas. Sempre que temos oportunidade, vamos para alguma montanha diferente para revigorar nossas forças.
Em cada trilha, temos uma surpresa: topo com vistas maravilhosas, lagos azuis pelo caminho, natureza exuberante, ou ainda animais silvestres avistados ao longe como que se quisessem serem vistos, mas ao mesmo tempo tomados por extrema timidez e receio.
Alguns colegas indicaram uma trilha um pouco mais íngreme em uma montanha não muito famosa aqui da nossa região. Decidimos conferir. Minha esposa e eu nos levantamos bem cedo naquele fim de semana de início de Primavera e nos dirigimos para o local. O estacionamento aos pés da montanha estava vazio, indicando apenas que o local não era tão popular. Nos preparamos e iniciamos a caminhada que deveria ser de cerca de três horas até o topo.
Com pouco mais de uma hora de trilha chegamos a algumas áreas mais difíceis pra subir. Além da neve ainda presente, do caminho estreito, e do terreno bem íngreme, grandes pedras bloqueavam a nossa passagem, exigindo um esforço ainda maior para continuarmos. Com duas horas de trilha chegamos na metade do trajeto já cansados. Notamos que a trilha ficaria um pouco mais tranquila apesar do estreito caminho e da maior incidência de neve. Quanto mais próximo do topo, mais neve encontramos, o que é normal e esperado.
Neste momento avistei uma mulher, descendo a montanha em nossa direção. Uma vez que a trilha era estreita, parei em uma área com um pouco mais de espaço e me esgueirei numa pedra para liberar a passagem.
A mulher passou por mim, agradeceu e desejou um bom dia. Minha esposa, pra variar, puxou conversa: “Ola, tudo bem? Já está descendo?” A mulher concordou e disse que chegou bem cedo para a subida, por isso, já estava voltando. Disse ainda que gostava muito daquela trilha pois ela começa mais difícil e depois vai ficando mais fácil.
Minha esposa, não se contentou e finalmente perguntou: “E a vista lá do alto? É bonita? O que vamos encontrar quando chegarmos lá?”. A mulher abriu um sorriso e disse: “Não há vista alguma! O topo é coberto de árvores e não dá para ver nada de lá. Vocês facilmente notarão que estão no topo quando não houver mais trilha e todo o cenário ao redor estiver para baixo.” Finalmente, a mulher despediu-se e seguiu sua descida.
Era impossível não notar a frustração da minha esposa. Ela queria encontrar uma vista exuberante, com uma mistura de neve, céu azul e luz solar fazendo sombras diversas na encosta da montanha. Queria uma foto para o seu Instagram e para compartilhar com amigos e familiares. Parece que nada daquilo iria acontecer, já que não encontraremos nada mais do que o fim da trilha e altas árvores fechando toda a vista.
Mesmo assim continuamos e ao chegar no topo, realmente, não encontramos nada demais. Descemos e voltamos pra casa com um sentimento nem ambíguo e uma pergunta fundamental: E se não houver recompensa?
A cultura do herói
A maioria esmagadora das histórias literárias seguem o chamado roteiro do herói. Basicamente, a história apresenta um personagem (o herói), que vai enfrentando certos desafios que escalonam finalmente para o grande e maior deles. Quanto maior o desafio, maior é o nível de heroísmo requerido. A história termina quando o herói vence o desafio e recebe a sua tão merecida recompensa.
As crianças são moldadas desde cedo nessa forma de herói: precisam estudar e se dedicar para encontrarem uma profissão que lhes garanta uma vida boa.
Mais tarde, a vida profissional segue este mesmo roteiro. O esforço e a dedicação pela companhia são também caminhos para uma valorização e recompensa posteriores. Muitas vezes a própria religião apresenta a fé desta maneira: suporte os sofrimentos desta vida, faça o bem, siga os preceitos e sua recompensa será grande na próxima vida.
É uma cultura de esforço e recompensa que, felizmente ou não, nos encontramos cada vez mais. Uma cultura onde esforço e recompensa tornam-se sinônimos de ação e reação, causa e consequência. É fácil perceber a frustração de muitos quando a recompensa e o reconhecimento não acontecem.
Vivemos em um mundo onde se valoriza e espera o que ainda não se tem, e por estarmos voltados para o fim ou a recompensa, deixamos de lado toda a jornada presente, como se vida só tivesse valor pelo resultado final que ela alcança.
Por isso, a pergunta se faz muito oportuna para nortear as nossas ações: E se não houver recompensa? E se depois de tanto estudo, o jovem decidir por uma profissão que não tem o mesmo sucesso profissional que os pais esperavam por ele? E se depois de tantas horas extras, finais de semana dedicados a empresa, esforço e dedicação, a promoção para aquela vaga de liderança não acontecer? E se após horas de subida, a paisagem no topo da montanha não existir? Por fim, você faz o que é bom apenas pela recompensa? E se não houver recompensa, vale a pena fazer o que é bom?
O herói não se torna herói, ele nasce assim
Longe de todo e qualquer determinismo histórico, sempre me fascinou a ideia de que o ser humano expressa no seu tempo presente a totalidade daquilo que ele é. E ao mesmo tempo em que ele se inova, ele também revela a sua essência mais pura e completa. É essa ideia que nos ajuda a entender que o herói não se torna herói quando recebe a sua recompensa. Ao contrário, ele já é o herói na primeira página de um livro, antes mesmo de ser apresentado ao leitor. Ele nasce herói e suas ações ao longo da história apenas revelam a sua natureza.
Referências
📷 Tvende italienerinder | Ernst Meyer (Danish, 1797 – 1861)